Rafaella Maiello

Psicóloga e Psicanalista

CRP 06/117568

Busco escrever este texto para organizar e registrar para mim (e para os leitores) os vários fiapos que me trouxeram até o presente momento da formação em Psicanálise. Fui inspirada pela palavra “fiapo” em mais um dos seminários de Freud. Ouvi esta palavra como uma forma poética de aludir ao aparelho psíquico de memória do qual Freud nos fala, sendo este um dos seus conceitos centrais que será desenvolvido ao longo de sua obra. O aparelho psíquico de memória é um conceito inaugural, aparece em seus primeiros manuscritos, inclusive no famoso “O projeto” (1895). Estes escritos iniciais guardam “uma riqueza material, em contrapartida uma pobreza conceitual”, frase que ouvi também neste seminário de Freud. Discordo neste momento. Não consigo enxergar pobreza por não haver uma conceituação teórica consistente, afinal, sendo inaugural, não podemos esperar algo tão consistente, mas podemos admirar a beleza do que depois vai ganhar corpo, forma e robustez em seus futuros escritos (igualmente ricos, não mais inaugurais). 

Me encanta pensar na riqueza inaugural de quem começa a cogitar transformar seus estudos em algo aproveitável, consistente e transmissível. Humildemente, me identifico com esse lugar, creio que me encontro neste momento de “cogitações” e é a partir dele que retomo meus fiapos. 

Quando inaugurei meu consultório (espaço físico) tive o cuidado de escolher uma imagem que representasse uma “marca” e com isso construir meu site. Investi tempo e energia criativa e psíquica nessa procura que não demorou muito para se estabelecer em uma imagem principal que ficava ao fundo, esta imagem retratava um trabalho de fio de lã, um trançado que remete a um crochê ou tricô. Além desta imagem de fundo, buscava por outras que ilustrassem tecidos e as utilizava para outras postagens, era preciso perceber pela imagem o trabalho da trama desse tecido – as variações são enormes (jeans, linho, juta, lã, seda …). Não sabia muito bem, na época, o porquê desta escolha, mas estava de bom tamanho para mim. A ideia principal era de que havia uma trama importante a ser trabalhada em mim mesma nesta “abertura de consultório” – inaugurando o espaço físico do consultório também estava inaugurando “meu espaço psíquico” para receber pacientes, para receber os estudos de psicanálise, para estar em análise e para a vida em Instituição de Psicanálise. 

A associação que fiz foi de fiapos de memória que constituem nosso aparelho psíquico porém, não como uma memória de computador (terabyte (TB)) e sim como uma memória contínua e viva que se liga/se costura de fio em fio e se atualiza nas nossas vidas, constituindo as mais diversas tramas. Assim, fiz a junção artesanal, manual e gradativa dos fios da minha intenção inicial de trabalho de consultório com os fios da minha história que passam pelo trabalho do crochê principalmente – atividade manual e criativa que retomei novamente neste período de formação em psicanálise, inclusive.  

Para mim, o crochê é o espaço criativo de transformação manual dos fios sendo estes de infinitas texturas, gramaturas e cores. Me lembrei dos trabalhos de crochê que não terminei quando criança (em especial do mais traumático que não foi concluído porque foi jogado fora em meio à bagunça); me lembrei do cordão imenso que fiz quando aprendi os primeiros pontos de crochê (na época aquilo foi mágico para mim, os pontos unidos não se soltavam uns dos outros e só com uma agulha, com paciência e persistência eu podia faze-lo até me cansar); me lembrei até dos barbantes que enrolava em latas de alumínio de refrigerante e depois colava com cola branca e disto surgia um porta-lápis (era uma transformação criativa que fazia caber outra tão especial quanto, meus lápis-de-cor); me lembrei também dos fios de barbante que colei em tela junto de outras miçangas e lantejoulas para formar uma arte abstrata – ali eu uni todos os elementos de que mais gostava, o resultado foi rico em textura, materiais e cores. Bem, se continuar a puxar esse fio das cores e das “artes” que fiz, posso ir muito longe – pensando bem, devo ter ido longe o suficiente para chegar até aqui.

Cá estou mostrando-lhes e entrando em contato com minha caixa de crochê, onde os fiapos da minha vida são instrumentos que me ajudam a costurar as teorias que tomo contato, e assim, as transformo artisticamente também. Minha caixa de crochê possui vários novelos de linhas e lãs, alguns restos de trabalhos já concluídos. Quando abro a caixa, me inspiro em usar uma destas sobras, a princípio, na intenção de esgotá-la, dar um fim a este resto. Porém, não é isso que acontece, quando começo a trabalhar o resto de linha me dou conta de que preciso comprar um novo novelo para concluir um novo trabalho que surgiu ali. Assim tem sido meu contato com os textos de psicanálise, quando penso em terminá-los para esta ou aquela aula e/ou discussão – nesse sentido, dar um “fim” – os textos, assim como as linhas, me levam para novos lugares e novos trabalhos, novas e infindáveis costuras. Assim também tenho entendido o processo de uma análise, quando pensamos ter dado “fim” a um assunto, uma lembrança ou um ponto, rapidamente ele pode se transformar em um novo trabalho elaborativo, evocativo de memórias e novas costuras. Mas para isso, precisamos de criatividade (na dupla) e para exercer a criatividade, creio que precisamos de liberdade para pensar, para lembrar, para costurar e descosturar e tantas outras coisas que compõem esta arte da psicanálise.

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Rafaella Maiello

Rafaella Maiello

Sou Psicóloga Clínica formada pelo Centro Universitário São Camilo (2013) e Psicanalista em formação pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Antes de me dedicar integralmente à prática clínica, construí carreira de oito anos em Recrutamento e Seleção

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